
A formação artística é, por vezes, determinante para o que outrora se chamava a ‘fotografia como arte’, quer dizer, a arte cujo ponto de partida e de chegada era a fotografia, e não a fotografia cujo ponto de partida e de chegada era a fotografia. Mesmo na chamada ‘fotografia documental’ e na videoarte, a fotografia, parada ou em movimento, foi sempre o destino último da criação. Incluo nesta afirmação toda a história da ‘performance’, cujas obras mais notáveis não podem, na realidade, ser consideradas artes do espetáculo tendo o público como objetivo estratégico. A performance e o seu público restrito assemelham-se mais a um teatro anatómico, ou a um teatro filosófico, destinados à fotografia e ao vídeo, do que a ‘espectáculos’. O objetivo final é sempre de orden analítica e ideológica.
Há talvez coisas óbvias que distinguem estas duas trajetórias da fotografia, mas há sobretudo uma miríade de subtilezas que fazem da fotografia como arte uma extensão e até uma superação da pintura, da escultura, da arquitetura e mesmo da fotografia (designada por vezes son o epíteto de ‘straight photography’). Ambas deram origem a obras de arte extraordinárias e, por vezes, irrepetíveis.
Em Portugal, foram raros os casos de artistas que seguiram este tipo de viagem pelo meio fotográfico como ferramenta conceptual e visual da representação. Houve incursões, experiências fugazes, mas raramente percursos sólidos neste campo fundamental da arte norte-americana, europeia, e asiática da segunda metade do século 20, e do século 21.
A obra fotográfica de Bárbara Fonte chamou-me, pela ordem de razões acima descrita, a atenção, nomeadamente pelas suas características intrínsecas, mas também por somar-se à raridade que tem sido e continua a ser a fotografia portuguesa feita por mulheres. Contam-se pelos dedos de uma mão, ou pouco mais, as autoras: Maria Lamas, Helena Almeida, Patrícia Almeida, Joana Rosa, Júlia Ventura, Mariana Castro, Bárbara da Fonte e…, e…?
A fotografia começa por ser o resultado tecnológico reprodutível de um olhar treinado sobre que nos rodeia, quer dizer, procurar e encontrar o que está diante de nós, mas também o que baila no nosso cérebro e mexe no nosso corpo, o que urge o sangue e as sinapses químicas e elétricas a criarem algo de artificial que aprendemos a codificar e descodificar, transformando esse algo em comunicação, interação, linguagem, intimidade e arte.
A principal barreira que as mulheres artistas têm pela frente quando se aventuram para lá das coisas exteriores a si mesmas, a Natureza, a Arquitetura, a Política e o Outro, é o seu próprio corpo e a imagem que dele fizeram milénios de representação do mesmo sob o impulso da curiosidade e desejo dos machos caminhantes e caçadores inteligentes. O processo é subjetivamente doloroso, e espinhoso do ponto de vista conceptual. Mas sem a coragem de percorrer este caminho, é impossível trazer às artes até hoje dominadas pelos homens, a verdadeira novidade feminina. Mesmo quando esta inscrição sexual é matizada, por exemplo, pela duplicidade ou indecibilidade de género.
O maior desafio que as mulheres artistas enfrentam no domínio da auto-representação é, não só o da ultrapassagem dos estereótipos masculinos da pulsão ótica em direção às pregnâncias do sexo oposto, mas também o do olhar sobre o seu próprio corpo, do qual são, aliás, quase sempre, muito conscientes. Este é um diafragma cultural cuja perfuração é obrigatória. Só depois saberão o que está do outro lado.
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